CATAGUASES:
Um olhar sobre a
MODERNIDADE.






 

Mobiliário


A trajetória da modernidade do mobiliário brasileiro através de Cataguases. 


Anaildo Bernardo Baraçal 

 


Residência Nanzita Ladera Salgado, Cataguases.
Projeto: Arquiteto: Francisco Bologna 1958.
Designer do mobiliário Tenreiro


A ocorrência da arquitetura moderna em Cataguases, nas décadas de 40 e 50, foi sem dúvida o vetor, o suporte e o continente de outras manifestações artísticas. Com obras ousadas, no sentido da adoção de novas soluções plásticas contrárias ao senso dominante, a arquitetura demandava equipamentos para as variadas necessidades funcionais e buscava a coerência do todo: mútua afirmação de índices da contemporaneidade e exaltação do moderno. No limiar entre a mera resposta funcional, a expressão plástica e a ergonomia, o mobiliário exerce papel documental para a interpretação da história das mentalidades, no espaço e no tempo.
Ainda que se encontrem em Cataguases certos móveis modernos de origem anterior ao período do surto modernista, a opção de adoção de determinados exemplares conota o partido seletivo, resultante de orientação definida e clara. O mesmo se pode dizer da busca e escolha do designer para conceber o preenchimento do espaço arquitetônico de uma casa, de uma escola, de um hotel. A arquitetura moderna em Cataguases propiciou a introdução, valoração e reavaliação do mobiliário, com alguns desenhos de móveis já centenariamente reconhecidos na Europa..
Falar da modernidade do mobiliário em Cataguases é reiterar a referência transnacional e atemporal do bom móvel. Internacional, funcional,versátil - estética e fisicamente - a sua personalidade, que reflete a do autor, não impede o diálogo e a convivência entre móveis diversos. Embora particular o bom móvel estabelece um diálogo com a arquitetura e com o usuário: sua memória acomoda-se à do sujeito responsável pela escolha, desenho ou uso.Incorpora-se, dado ser objeto de utilização articulada a outros móveis, ao arranjo individuado e proporciona leituras específicas. Tais móveis são elementos signicos, caracteres mais ou menos estabelecidos, de cuja organização resultam palavras e textos de elaborada poesia. Essa maleabilidade organizacional é faculdade do homem do arranjo que segundo JEAN BAUDRILLARD:

"...nem é proprietário, nem simplesmente 
usuário e sim um informante ativo da 
ambiência. Dispõe do espaço como de uma 
estrutura de repartição e através do 
controle do espaço detém todas as 
possibilidades de relações recíprocas e 
portanto a totalidade dos papéis que os 
objetos podem assumir"(1).

Neste ponto, cabe observar o contexto condicionante desse homem do arranjo e a tentativa de estruturá-lo enquanto definidor de articulações próprias, selecionadas dentre possibilidades ilimitadas, ou quase ilimitadas, do jogo de relações entre peças de mobiliário em número finito. Tal postura implica o gradativo abandono da ditadura da coerência do conjunto e da adoção de mobiliário uni-estilístico e de unidades mono funcionais. O mobiliário moderno existe sob a égide do múltiplo, com liberdade de exercício diferenciado de arranjar espaços com funções híbridas, mas não é isso que se observa nas escolhas empreendidas em Cataguases, nas décadas de 40 e 50. No embrião do organismo funcionalista percebe-se a afiliação a sistemas e esquemas culturais inibidores. Ou antes, ttrata-se-ia da conciliação entre a ruptura e os lastros da tradição. Os parâmetros da sociologia da habitação mineira e, por extensão brasileira, constatáveis na residência projetada por OSCAR NIEMEYER para Francisco Inácio Peixoto, agrupam e opõem espaços público, espaços íntimos e espaços de serviços.
Em Cataguases, as plantas residências do período propiciam blocos de utilização com a interpenetração de meios-pisos e mezzaninos, que proporcionam alguma "transparência" funcional. A eficiência do equipamento nos espaços de serviço da usina doméstica - ainda não necessariamente máquina de morar - depende dos empregados e não dos moradores; a copa, separada da cozinha por balcões e armários, representa a transição e duplicação hierarquizada do espaço de jantar. A sala de jantar perde o confinamento, torna-se agora extensão da sala-de-visita ou de estar. As salas de recepção assumem ares mais formais, se comparadas ao mezzaninos e terraços, já os dormitórios, reduzidos ao mobiliário essencial para o descanso, guarda e suporte, evidenciam o espaço e repouso, linearmente previsível como o sono, e insinuam sua contigüidade e orientação para os espaços de convívio familiar. A este primeiro eixo, representado pela destinação habitacional, pode-se conjugar o espaço do exercício profissional, articulando funções públicas e privadas, como ocorre na residência do casal Ottoni Alvim Gomes (médico) e Nanzita (artista plástica).
A justaposição exemplificada permite observar a concepção moderna de igualdades de oportunidades com independência das longas trajetórias das famílias tradicionais: a qualidade positiva do trabalho, valorizada e valorativa do próprio homem, marca do novo orgulho de segmentos da elite pelo mérito pessoal. A afirmação de descontinuidade em termos da sociedade tradicional, entretanto, só pode ser parcial, pois certas tradições sociais permanecem no esteio das novas estruturas, mesmo que residualmente. Imbuídos dos princípios definidores da contemporaneidade assumida- por si ou por delegação os homens do arranjo - as figuras de Francisco Inácio Peixoto, Oscar Niemeyer, Joaquim Tenreiro, Nanzita, Ottoni Alvim Gomes, Francisco Bologna, Jan Zack, entre inúmeros outros, representam as condições e elaborações do contexto inclusivo. Sem negar-lhes fulgor próprio a gestação e maturação de suas contribuições culturais derivam das lógicas específicas dos períodos .

 


Desenhos para o primeiro projeto de
decoração realizado por Joaquim Tenreiro...

Residência de Francisco Inácio Peixoto;1942.


As ligações entre industrialização civilização da máquina, capitalismo, mentalidades e concepções artísticas costumam ser meios de compreensão dos rumos expressivos da sociedade contemporânea. Todavia, os mecanismos básicos dessa compreensão ocorrem diferencialmente no tempo-espaço e estão sujeitos a condicionantes específicos. A trajetória da expansão industrial, na fase que se alonga da segunda metade do século XIX até as convulsões sociais durante as grandes guerras mundiais acha-se distribuída, em países como o Brasil, em descompasso com o hemisfério norte
Aqui, o primeiro impulso dos anos 10 e seguintes, projeta o futuro de mercados massivos internacionais e se revisita o passado nacional: 1922 sintetiza movimentos do jovem oficialato, dos segmentos urbanos médios, da organização proletária comunista na Semana de Arte Moderna, em São Paulo e no centenário da Independência no Rio de Janeiro. Da São Paulo motriz eclodem os anseios vanguardistas no mobiliário insinuamente das tendências européias da Bauhaus e do Art-decô. Da Rio de Janeiro, matriz do exercício político, o neocolonial. Desde então verificam -se as intenções discrepantes da simplificação do móvel - marca das condições da incipiente sociedade industrial - e as interpretações ecléticas, pouco inventivas, do que se considerava o passado colonial, mascarando formas e materiais, irreconhecíveis sob o espesso escurecimento dos vernizes. 
Cataguases, na vertente primeira do progresso, representa no momento uma das ilhas industriais, apta pela geração de energia hidrelétrica a incrementar ainda mais seu nascente parque fabril. A tecelagem industrial do pai de Francisco Inácio Peixoto é justificada pela nova dinâmica dos mercados, catalizadora de mudanças na adequação e emprego de mão-de-obra, no âmbito local.
Nessa efervescência pode-se conceber a inquietação intelectual do grupo que, ao findar a década de 20, estimula a discussão modernista. Há em Cataguases um substrato cultural e empresarial propulsor de novo surto de modernidade, cerca de duas décadas adiante na contramão da desorganização do pós-guerra.
No que diz respeito ao mobiliário, a produção artística alinhada às novas perspectivas da sociedade industrial ressalta a busca de qualidade e de produção em série. Processos tecnológicos avançados para o momento, e até hoje intrigantes, permitem ao alemão MICHEL THONET e seus filhos produzirem em Viena, a partir de 1849, os móveis em madeira vergada (2). Os móveis Thonet, também conhecidos com austríacos, atingirão vários países, incluindo fazendas e residências urbanas no Brasil, desde a segunda metade do XIX. Menos difundido no Brasil, o movimento Artes e Ofícios na Grã-Bretanha estabelecera, a partir de 1880 a "criação da beleza como uma tarefa devida à sociedade: o desejo do restabelecimento do status do artista e do artifice e o rompimento da barreira entre as artes e as aplicadas.(3) Esses preceitos adquirem moderna atemporalidade em algumas produções, como as do escocês CHARLES RENNIE MACKINTOSH. Tais colaborações, embora renovadoras, não contituem ocorrências modernas, dado não rejeitarem as referências a estilos decorativos passados, rejeição essa que se constitui uma das características do mobiliário moderno.
No conceito de HERWIN SCHAEFER (4) a modernidade do móvel abrange o orgânico e o geométrico, o emprego de materiais, técnicas e formas tradicionais ou de recentes resultados tecnológicos. Entretanto, seja manual ou industrial, há certas qualidades do desenho caracterizadoras do mobiliário moderno que constituem, ainda segundo SCHAEFER, o desenho relacionado à forma essencial com ênfase nas qualidades estruturais ou esculturais de caráter abstrato; a obtenção de maior conforto e convivência com o mínimo de material (máxima da moderna tecnologia e da demanda econômica ): o uso de materiais leves em peso e cor, e de textura homogênea e compacta; a simplificação estrutural com redução de juntas, facilitando o processo de manufatura. A tais características acrescenta-se a de que o mobiliário moderno não concebe destinações diferenciadas, como a doméstica ou a empresarial, sem conotação de classe ou de maturidade: um móvel em tese para todos, em qualquer lugar e para qualquer situação (5).

 

Residência de Francisco Inácio Peixoto, Cataguases, Minas Gerais, 1942. Ambiente composto de uma chaise-longue, duas poltronas revestidas em tecido com estrutura em pau-marfim, uma cadeira de tiras de couro pintado, uma mesa de centro (de autoria ignorada) e um sofá com estruturas em pau-marfim e pés em contraplacado curvado. Na parede, da esquerda para a direita, replica de Emílio Petorutti. A seguir originais de Käthe Kollwitz, Iberê Camargo, Milton Dacosta e Maurice Utrillo. Ao fundo, ao corredor, desenho de José Pedrosa e, à direita, aquarela de Osip Zadkine.




O desenho do mobiliário moderno coincide, esteticamente, com o nascimento da pintura abstrata de KANDINSKY. As pressões econômicas e a orientação da produção em massa serão determinantes posteriores. A presença de certos exemplares em residências em Cataguases justifica a enumeração dos designers e algumas de suas contribuições à história do mobiliário: do construtivista holandês GERRIT RIETVELD, a cadeira vermelha e azul (1917); das pesquisas dos integrantes da Bauhaus alemã - solução a partir das inovações industriais - como a de MARCEL BREUER, que resultou na cadeira de braços Wassily (1925) e nas cadeiras de estrutura tubular (1926) e estruturas metálicas contínuas (1928); de MIES VAN DER ROHE, a poltrona Barcelona (1928). Da França, através do suíço CHARLES-ÉDOUARD JEANNERET LE CORBUSIER, em colaboração com PIERRE JEANNERET e CHARLOTTE PERRIAND, a chaise longue (1927), a cadeira de braços de encosto ajustável (1929), incorporando questões técnicas, sociais e econômicas, contrapondo ao purismo de Bauhaus. Em madeira compensada encurvada em moldes, o filandes ALVAR AALTO (19343) e MARCEL BREUER (1935).
Nos anos 30, os Estados Unidos sob influência da Bauhaus e de seus egressos, a estes contrasta a produção integral de FRANK LLOYD WRIGHT: a mobília acompanha cada projeto arquitetônico, com móveis distintos para cada construção; CHARLES EAMES EERO SAARINEM desenvolve, a partir das formas, cadeiras em compensado nos anos 40, e em fibra de vidro nos anos 50; os assentos em malha de arame, do ítalo - americano HARRY BERTOIA (1952).
É interessante observar, no período inicial, a colaboração de MARCEL BREUNER, com a empresa austríaca Thonet encarregada de produzir sua cadeira de encosto e assento em palhinha trançada a partir de bastidores de madeira vergada, apostos á base tubular continua (1928) (6). Outros artistas da Bauhaus recorriam à célebre Thonet e aos móveis vergados, que revalorizou ao apresenta-los na exposição de Artes Decorativas de Paris (1925) (7). Com o tempo as empresas Cassina e Knoll Associates Inc, passaram a reunir, também a produção desses objetos, sinônimo de design e mobiliário perene.
O Brasil assiste alienado, ancorado na estrutura sócio-ecônomica das oligarquias, à revolução no mobiliário europeu e norte- americano, a partir dos anos 20. O estado letárgico do desenvolvimento artístico não se abala, ainda que diante de transformações urbanística radicais, como a do centro do Rio de Janeiro, na primeira década do século. O furor das demolições e o ímpeto da ocupação dos espaços apenas reafirmam o ecletismo, de sabor romântico, fantasia parisiense nos trópicos. A qualidade artesanal de conceituadas marcenarias cariocas, como a Marcenaria Brasileira, Laubbisch E Hirth e Leandro Martins permanecerá, seguramente até os anos 50, subjugada ao copismo estilístico, esgotado em pastiches. A falta de arrojo reflete o estado do consumidor ávido pela posse o estabelecido e consagrado e com preferências limitadas. Em São Paulo, os anseios estéticos de atualização e o mobiliário moderno se afiliaria às simplificações artesanais britânicas. A ausência do mobiliário na Semana de 22 é bastante reveladora da sua desconexão orgânica em relação à arquitetura e da falta de reconhecimento de sua capacidade enquanto expressão de arte. A chegada de WARCHA VCHIK (1924) introduz no Brasil o internacional style (8), mas os influxos modernos colocam ênfase na art-decô. 
Neste ambiente de insípido marasmo, de requentadas e estéreis estilizações destaca-se JOAQUIM TENREIRO, português , nascido em 1906. Herdeiro da artesania do pai marceneiro, TENREIRO consolida as bases de renovação expressiva, a partir do conhecimento da tradição. O moderno alia a pesquisa dos recursos disponíveis à compreensão estrutural das necessidades sociais e implica a leitura do passado. Radicado no Rio de Janeiro, desde 1928, trabalhou para as firmas da moda, sujeito ao imperialismo da demanda dos neos "Chipandale (sic), Luiz XVI, D.João V e até o gótico."(9)
Francisco Inácio Peixoto conhece, por volta de 1929/30, a marcenaria Laubisch E Hirth, cuja excelência artesanal lhe marcará a memória. Em 1943, colocada a questão de mobiliar a recém-construida residência do traço de NIEMEYER, o modernista de Cataguases retorna ao Rio e à LAUBISCH, oportunidade em que lhe apresentam TENREIRO. (10) Desse modo estabelecem-se as condições favoráveis para JOAQUIM TENREIRO dedicar-se à personalíssima trajetória de designer de móveis, daí em diante parceiro de arquitetos de projeção. Desde 1935 TENREIRO elabora móveis de espírito novo e sua celebrada poltrona leve (1942) é marco da modernidade do mobiliário no Brasil.(11)
O cliente esclarecido e abastado de Cataguases proporciona a dedicação exclusiva do artífice à arte do móvel moderno, pois excetuada a copa, o mobiliário para toda residência de Francisco Inácio Peixoto, ficou sob responsabilidade de TENREIRO, cujos desenhos atestam a qualidade artística, formal e cromática. Nos ambientes sociais e no dormitório do casal, a madeira clara-caúna- confere leveza à organização e preenchimento dos espaços. As madeiras escuras, como o jacarandá, serão destinadas aos demais dormitórios e ao escritório. O TENREIRO observado ali, em 1943, embrenha-se pela sinuosidade de faixas de madeira, proporcionando continuidade visual entre os pés e os braços de poltronas, entre suportes dianteiros e traseiros. Surgem esculturas de linhas infinitas projetadas do pavimento e que dão ao móvel liberdade no espaço. Nas cadeiras, da sala de jantar e dos dormitórios, apenas as pernas esguias recordam as clássicas e difundidas produções do artista. Os encostos e assentos completamente envolvidos por revestimentos naturais ou sintéticos, sobre confortável estofamento, sugerem repouso: prazer e despojamento caracterizam o conjunto. A proposta de linearidade das estruturas dos moveis se expressa em formas geométricas puras, de aparência maciça, ou em continuas curvas em suaves oposições. Neste caso, encontram paralelismo nos moveis desenvolvidos por ALVAR AALTO, a partir de 1934, e por MARCEL BREUER, desde 1935.

 


Residência de Nanzita Ladeira Salgado, Cataguases-Mg. Joaquim Tenreiro


Se do ponto de vista estético os resultados se assemelham, pela ótica técnica significam diferentes respostas às condições disponíveis ou às concepções possíveis nos respectivos contextos espaço-temporais. No móvel de AALTO e no de BREUER, a base é recortada como um todo, em madeira compensada e encurvada em moldes, oferecendo extensões lineares ininterruptas, sem junções. No móvel de TENREIRO, por possíveis restrições tecnológicas ou por intenção do artista, o efeito de continuidade se dá pela justaposição de partes de madeira maciça de acabamento folheado. A solução para a composição do assento propriamente dito impõe diferenças de intenção, em especial na cadeira de braço e na espreguiçadeira do mezzanino. O entrecruzamento de tiras de couro colorido, em contraste de xadrez branco e vermelho e branco e azul, remete à maleabilidade das redes, na acolhedora acomodação do corpo e na aeração facultada pelas tramas abertas. Estes moveis ilustram bem a síntese entre tendências internacionais, pesquisa e reiterpretaçao da tradição, tudo considerado para contemplar a função e o uso agradável do móvel, fundamento da preocupação do designer. As grandes superfícies folheadas nas cabeceiras das camas, armários e penteadeiras asseguram o contraponto aos recortes dos móveis soltos, reforçando mutuamente as qualidades de mobilidade e sedentarismo da casa e da família. Revelam, ainda, respeito à singeleza das madeiras nobres, tributo do homem à natureza, exaltação da prodigalidade de texturas no Brasil e inserção na contemporaneidade através dos revestimentos sintéticos.
Outro percurso possível para a leitura desses móveis refere-se à lúcida procura por registros- marcas, selos e etiquetas - que estimulem a interpretação. As referencias à casa Laubisch E Hirth encontradas nos assentos de couro bicolor, na mesa do escritório, em móveis dos dormitórios e na sala-de-visitas, atestam a procedência carioca da sede da empresa, e sua ligação com TENREIRO. Nos espelhos dos dormitórios a etiqueta Langenbach E Tenreiro, fundada em 1943 e estabelecida no Rio de Janeiro à Rua da Conceição 147. A simultaneidade de registros de Laubisch e de Langenbach documentam o vôo de TENREIRO, o momento decisivo da opção de ser seu próprio patrão . A existência de indicações concomitantes de Laubisch e Serraria e Artefatos de Madeira Peixoto Ltda . Cataguases remete as hipóteses de co-produção ou de intervenção posterior para reparação. As marcas de Serraria-empresa familiar atuante entre 1905 e 1959-encontram-se na mesa de centro do mezzanino, com seus pés de palito e tampo irregular forrado de fórmica, e no conjunto de mesa e cadeiras da copa. A empresa dedicou-se à produção imitativa de móveis modernistas, com a presença de assentos Thonet e marcas a fogo de Aalto (sic) design made in Sweden. (12)

 






Francisco Inácio Peixoto, empresário e cidadão entusiasta, faz de sua residência cartão de apresentação da modernidade e de sua ação pública a estratégia para a circulação e propagação de novo ideário. O meio mais adequado foi a construção de uma grande escola, cuja ambiência contribuiria para a formação de mentes mais abertas, pelo convívio com a contemporaneidade. Ato contínuo, a edificação do Colégio Cataguases a cargo de NIEMEYER torna-se realidade, entre 1943 e 1947. Do projeto de mobiliário incube-se o TENREIRO: criar equipamento de uso extensivo, intensivo e público e garantir o padrão em eventuais produções seriais. Os desenhos identificados pelo carimbo de Langenbach E Tenreiro Ltda proporcionam visão de conjunto da proposta estética e da destinação funcional e possibilitam a compreensão global da empreitada, de grande impacto para o designer. Os documentos do projeto permitem identificar interferências e substituições, perdas futuras ou intenções irrealizadas. Nestas categorias, encontra-se um balcão com painel decorativo, não localizado, e o anfiteatro, inteiramente diverso da feição proposta.

 


O TENREIRO do Colégio Cataguases guarda o destaque às madeiras, a legibilidade das estruturas e funções, as soluções simples, valorizando o uso. Linhas docemente arqueadas e maior robustez de suportes em cadeiras, mesas e carteiras escolares, acentuam a linguagem do artista. Predominam as madeiras em castanho-médio, contrapostas à clareza da madeira utilizada no conjunto de mesa-de-centro e poltronas do saguão nobre, portador de etiqueta Laubisch E Hirth. Nas poltronas, de extrema leveza, a estrutura de suporte apenas se interseciona com o plástico, outrora lona, que define o assento e encosto contínuos.
A solução adotada relembra a plasticidade da rede indígena, enquanto os esteios assumem aspecto escultural. Observa-se a engenhosa e sutil identificação entre o mobiliário e a arquitetura. O perfil losangular dos guarda-corpos das rampas reaparece nos suportes do tampo da mesa para o diretor, partido repetido em mesas da secretaria e em mesas dos professores, nas salas de aula, cujas etiquetas referem-se a produtores locais. No mobiliário do Colégio Cataguases encontram-se etiquetas de Laubisch em exemplares equivalentes às pranchas de TENREIRO.Todavia são freqüentes a identificação de marcenarias cataguasenses: a Serraria e Artefatos de Madeira Peixoto S.A (em dois formatos gráficos), a Fábrica de Móveis Cataguases e a Fábrica de Móveis São Francisco deixaram ali sinais de fatura, respeitada a concepção de TENREIRO(13). Não se pode afirmar, no entanto, se motivadas pela grande demanda do projeto ou se fruto de substituições, reparos ou complementações posteriores. Lá estão , também, os assentos Thonet, produzidos pela Gerdau de Porto Alegre, além de banqueta com a estampilha Aauto (sic) design made in Sweden. O complexo equipamento do colégio evidencia e confirma as tendências de busca de soluções fundadas na atualidade e na releitura crítica do passado, a internacionalização do mobiliário, a produção descentralizada e mecanizada.
Em 1947, JAQUIM TENREIRO deixa a associação com Langenbach e estabelece a primeira loja de design que o Brasil conhece, em Copacabana, Rua Barata Ribeiro. Nesse mesmo ano realiza a cadeira de embalo e participa de Salão no Rio de Janeiro. A mesa e cadeira estrutural e a cadeira de três pés, produtos do período, somam-se ao repertório já consagrado do artista. Em 1953, estende suas atividades comerciais a São Paulo e em 1954 transfere a oficina carioca para o Bairro de Bonsucesso, Rua 7 de Março, numero 30. cataguases não esquece TENREIRO, que retorna à Zona da Mata e complementa a clínica e residência de Ottoni Alvim Gomes e Nanzita, obra do arquiteto Francisco Bologna... As etiquetas das produções para a casa de Nanzita, de meados dos anos 50 estampam, com a merecida identidade Tenreiro Móveis e Decorações- Rua 7 de Março 30/80 A . No conjunto do mobiliário constata-se persistência do destaque às madeiras, evidenciando os veios e colorações em caprichosos folheados, explorados em grandes painéis nas cabeceiras e fachadas de armários, apresentadas uma a cada dormitório, conferindo-lhes identidade. Nos estofados o conforto , a palheta harmoniosa e a desaparição dos braços, em alguns exemplares. O estofamento apenas libera os pés, bastante simplificados se cotejados aos dos anos 40. As linhas tornam-se ainda mais puras, retilíneas ou suavemente curvas, e nas mesas a madeira divide espaço com outros materiais. A exemplo do Colégio Cataguases, TENREIRO dialoga com a arquitetura através de soluções comuns, como o tampo em vidro pintado da mesa-de-jantar, recurso presente nas vidraças das fachadas. Os interiores modernos em Cataguases completam-se com móveis internacionais , adquiridos na Forma, representante dos produtos Cassina e Knoll: de MARCEL BREUER, MIES VAN DER ROHE, EERO SAARINEM, HARRY BERTOIA. Os assentos Thonet permanecem como uma constante. Um clássico como os exemplares assinados pelos designers citados, a cadeira de embalo habita o salão. 

 

Mobiliário de Tenreiro no Hotel Cataguases.


JOAQUIM ALBUQUERQUE TENREIRO deixa a cena de Cataguases, mas continua a desenvolver o móvel com autoria até 1968. Renomado e solicitado, contribui com a decoração do Salão de Banquete do Palácio do Itamaraty, em Brasília (1967) e recebe homenagens de reconhecimento, através de exposições que exaltam sua fecundidade realizadora. A significativa contribuição de TENREIRO ao desenho de mobiliário no Brasil constitui a abertura de novos caminhos, trilhados por uns, imitado por outros. Mesmo em Cataguases proliferou o espirito da modernidade nas empresas locais . Em 1951, inaugura-se o Hotel de Cataguases, obra do arquiteto Aldary Toledo (14), com móveis de concepção mais limitada e de execução menos aprimorada que obedecem a certos preceitos de TENREIRO, como as estruturas autônomas, as madeiras nuas, os assentos e encostos em tecido ou faixas de couro. Os pés de palito em profusão, a exposição de juntas travadas a cunha e o encordoamento com fios plásticos formando assento e encosto, influência possível do designer italiano GIO PONII, constituem a especialidade desses móveis produzidos pela Serraria da família Peixoto (15), ou importados de Pará- de Minas, se comparados aos de TENREIRO. 
Mas TENREIRO é incomparável, e sua inquestionável contribuição ao mobiliário brasileiro- desconhecida fora de certos círculos- não teve continuidade sob licença, no Brasil e no exterior. O MESTRE, desaparecido em 1992, deixa o legado das mentes lúcidas capazes de harmonicamente relacionar as experiências do passado e o experimento do presente, condição de atemporalidade. O compreensivo olhar de TENREIRO para a tradição da rede, da madeira, da palhinha; a potencialização de madeiras incomuns, a busca da leveza e do conforto a adequação às técnicas possíveis, a consideração do corpo do usuário, tudo exprime em móveis o que o artista revela:

 

"Sempre fui muito inquieto. O que fiz foi 
reformular as dimensões dos móveis usados
no Brasil, porque eles eram confortáveis . 
Defendi o artesanato com ardor, contra a 
industrialização que avilta os móveis. Antes 
de mim, existiam lojas de móveis, não 
desenhistas... Mas não digo que criei o móvel 
moderno no Brasil, apenas procurei das 
características modernas ao que se 
fazia no País. Nisso fui precursor. Criei móveis 
despojados, limpos, levando em 
conta a tradição artesanal brasileira. 
Um móvel tem que oferecer conforto de 
várias horas, se não oferecer um conforto 
duradouro é inútil."(16)


Os ambientes e os arranjos versáteis de TENREIRO são atuais e seus móveis partilham espaços em igualdade com os de design internacional e os de série Thonet: valores específicos a se reforçarem mutuamente. Em Cataguases o mobiliário moderno afirma o arrojo das opções humanas na cidade, cuja modernidade no mobiliário está intimamente ligada à modernidade do móvel no Brasil.
Rio de Janeiro, novembro de 1993.


Anaildo Bernardo Baraçal.
Museólogo.
Mestrando em Comunicação, área de sistemas de Significação, UFRJ-ECO
Professor da Universidade do Rio de Janeiro, UNI-RIO.


NOTAS. 

(1) BAUDRILLARD, Jean. O Sistema dos Objetos . p . 32
(2) Estas informações e outras relativas à história desse notável estabelecimento estão contidas, de forma analítica em VEGESACK, Alexander Von. L'Industrie Thonet: de la creation artisanale à la production en serie. 
(3) HAYWARD, Helena ed. World furniture p. 225.
(4) SCHAEFFER, Hervin "The Twentier century, in HAY WARD, Helena ed. Word furniture . p. 290.
(5) COSTA Lucio. "Notas sobre a evolução do mobiliário luso brasileiro in MEC/ IPHAN/ FAUSP. Arquitetura civil III: mobiliário e alfaias . p. 145. Ao apreciar a característica "democrática" do móvel moderno, Lucio Costa observa a exclusão de acesso da maioria da população constituída, no País, pelos que estão abaixo da pobreza. Além disso, ocorre a diferenciação do produto qualidade do material e acabamento ajustado às várias faixas econômicas.(6) SCHAEFFER, op . cit.p.47
(7) VEGESACK, op.cit.p.47
(8) AMARAL, Aracy. Artes Plásticas na semana de 22. p. 156
(9) Conforme enumeração de TENREIRO a DOMINGO, p. 29: Laubisch E Hirth (1933/ 1936 e 1942/1943), Leandro Martins (1936/1940) e Francisco Gomes (1940/1942)
(10) Informações obtidas através de contato telefônico com Francisco Inácio Peixoto Filho, em 19/10/93 e reafirmadas pela DOMINGO, p. 29
(11) PONTUAL, Roberto. Dicionário das artes plásticas no Brasil. P.520 e DOMINGO,p.29
(12) Francisco Inácio Peixoto Filho informou terem sido os móveis em madeira compensada curvada adquiridos à firma Finlândia, com sede em Além Paraíba e depois em Teresópolis. O proprietário da empresa Finland, no município serrano fluminense informou que a empresa permaneceu, sempre, na mesma sede e não forneceu móveis a Cataguases.Continua em aberto a origem do mobiliário em questão .
(13) Mesmo sendo de tipo particular e especial, o circuito de produção , circulação e consumo do mobiliário de TENREIRO em Cataguases merece estudo comparativo com o trabalho de MOLES, Abrahan, no que concerne às artes virtuais, in Sociodinâmica da cultura . p.234.239
(14) O arquiteto realizou a construção da residência de José e Josélia Pacheco, com mobiliário básico de autoria de TENREIRO.
(15) Segundo Francisco Inácio Peixoto Filho a concepção do mobiliário do Hotel esteve a cargo do artista plástico JAN ZACK
(16) RITO, Lucia.. Joaquim Tenreiro moderno ontem, hoje e sempre.


BIBLIOGRAFIA

AMARAL, Aracy, . Artes plásticas na semana de 22, São Paulo: Perspectiva, 1970. 134p.
BAUDRILLARD, Jean. O sistema dos objetos. São Paulo: Perspectiva, 1973 . 235p.
DREXLER, Arthur, Charles Eames furniture from the design collection, New York: The Museum of Modern Art, 1981 56p.
GARNER, Philippe, Twentieth-century furniture. New York: Van Nostrand Reinhold, 1980, 224p.
HAYWARD, Helena, ed. World furniture. London: Hamlym, 1975, 320p.
MEC/ IPHAN/ FAUSP. Arquitetura Civil III: mobiliario e alfaias. São Paulo: EDUSP, 1975, 194p.
MOLES, Abraham A. Sociodinâmica da cultura, São Paulo: Perspectiva 1974. 336p.
PONTUAL, Roberto, Dicionário das artes plásticas no Brasil, Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1969.
DOMINGO/ JORNAL DO BRASIL, a 10: Rio de Janeiro: nº 489 p. 28-30, 1985.
RITO, Lucia, Joaquim Tenreiro: moderno ontem, hoje e sempre. Folheto de exposição, Rio de Janeiro: Rio Design Center, 1991.
VEGESACK, Alexander von, L' Industrie Thonet: de la création artisanale à la production en série. Paris: Musee d'Orsay, 1986. 63p.