HISTÓRIA

O menino do Rio Doce


*Antonio de Paiva Moura

Em 1942, ao vir ao mundo, eu ainda não tinha nome. Nasci sem nome. Meus pais disseram apenas que era menino-homem. Engraçado: na espécie humana eles não dizem macho ou fêmea. Dizem apenas menino ou menina. O certo é que nasci. Certo bem certificado no cartório. Ai sim, deixei de ser apenas menino homem para começar a ser Aniversino. Assim foram me levando até que eu comecei a andar. Daí em diante comecei a me levar por mim mesmo. Foi assim que saí de Mutum. Só mais tarde fiquei sabendo que o nome de minha terra natal é o mesmo que "galo selvagem". Passei de passagem por Conceição do Capim. Antes que um boi me pastasse, fui para Aimorés. Cidade mineira, bem na divisa de Minas Gerais com o Espírito Santo. 
Um dia, por volta de 1954, acordei de minha impensada vida e pela primeira vez meditei: Onde estou? Quem sou eu? Para onde vou? Nesses reflexos fiz um curto balanço do que fazia: só o bom, o gostoso... mais nada. Um gancho de arame na ponta da vara, rodando arco de barril da rua da Igrejinha para a Rosca Seca. Da Igrejinha para o Pinga-fogo, Barra do Manhuaçu, jogar o suor no Rio Doce. Viver em Aimorés e não andar de bicicleta é o mesmo que viver na Amazônia e não andar de canoa. Assim, pedalar é preciso e viver também é preciso. Pescar lagosta no rio ou tirar cascudo nas locas dos córregos era o que eu mais gostava. Bicicleta? Só quando um amigo, em troca de uma sacola de caju ou de manga rosa deixava eu pedalar a bichinha. Futebol era jogo para todo mundo, nos terrenos baldios ou no meio da rua. Mas glória mesmo foi quanto um dia pisei a grama fofa do campo do colégio panamericano. Só me faltava uma coisa: pilotar uma charrete. Daqui prá li de lá prá cá. Toca para a Igrejinha! lá vou eu, batendo a rédea na anca do animal. Era uma profissão de respeito. Quando alguém aparecia bem vestido, metido, diziam: "está luxando mais que cavalo de charrete". Assim ia, ia indo. Só não consegui ali nos confins da Lorena, foi ser canoeiro. Mas que eu admirava o canto lamentoso deles, isto sim, é muita verdade. 
Depois que aprendi a andar, correr, falar, trabalhar, aprendi a sonhar. E um dos sonhos foi ir para a capital. A do Espírito Santo estava mais perto e mais fácil. A de Minas estava mais longe e mais difícil. Minha opção foi para a mais distante e a mais difícil. 
Assim começa essa história, por volta de 1956. 
Em Belo Horizonte fui trabalhar com o famoso China, que era também de Aimorés. Era dono de um bar na rua do Ouro. Eu nunca havia trabalhado em balcão de espécie alguma. Mas meus conterrâneos sabiam enfrentar a vida até nos Estados Unidos, por que eu não haveria de me sair bem cá na nossa Capital montanhesa. O China, meu patrão, havia tomado um tiro em um pulmão. Como era comerciante, deveria, por lei, fazer abreugrafia todo ano. Com aquele pulmão baleado não dava. Então ele tirou uma carteira de saúde com meu retrato e eu ia todo ano tirar a chapa no seu lugar. Com essa de eu emprestar meu pulmão para ele é que fomos respirando uma bela de uma amizade. Como eu me chamo Aniversino, pegaram a mania de comemorar meu aniversário e meu nome mudou para Zico. O China ficava até com um pouco de ciúmes de meu prestígio. Quando ele foi sinistrado, carbonizado por um botijão de gás eu fiquei com o ponto. Mas eu fiquei porque meus amigos da Serra não me deixaram ir embora. O negócio não tinha esse nome não, mas a partir daí, "Bar do Zico" se chamou. 
Esta história ainda não acabou, mas eu, como Sherazade, ainda tenho mais de mil e uma noites para termina-la. Até breve. 
Zico.

Menino - Tela de Jacques Garzon