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Matias Cardoso
MATIAS CARDOSO

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As origens da ocupação e povoamento do Norte de Minas

João Batista de Almeida Costa

Conhecer os fatos bandeirantes que são fundamentais para uma compreensão histórica do processo inicial de povoamento e ocupação do território do Norte de Minas é o caminho que percorro neste artigo. Tomo como conceito que instrumentaliza a minha argumentação uma categoria nativa recorrente em comunidades rurais norte mineiras e a elevo à condição de conceito. A história da raiz refere-se aos primeiros acontecimentos , ou seja, os eventos que dão fundação a uma coletividade propiciando a construção do mundo social dessa mesma coletividade. Para ler a história da raiz regional, faço uma articulação entre o saber transmitido oralmente entre as gerações dos moradores daquela que se constitui como a primeira povoação permanente dos antigos Currais da Bahia, a cidade de Matias Cardoso, e obras da historiografia brasileira que tiveram como temática o bandeirismo paulista e baiano. No momento atual do conhecimento do passado das sociedades não há como se debruçar apenas sobre uma dessas possibilidades, havendo a necessidade de articulá-las para que se possa conhecer não apenas a história das camadas dominantes porque escritas em documentos, mas também a história das camadas subordinadas para se ter a possibilidade de uma apreensão mais global dos acontecimentos verificados em tempos imemoriais.

Os reflexos da memória social, um olhar que ilumina o "esquecido".

Há na cidade de Matias Cardoso uma visão sobre o bandeirante paulista de mesmo nome, bastante diferenciada daquela construída pela historiografia brasileira e que, alimentada pela memória oral, vem sendo transmita entre as gerações de matienses. Esta é uma estratégia utilizada para afirmar o "esquecimento" da localidade e da região produzido pelo afastamento simbólico da centralidade da exploração aurífera em Minas Gerais.
Ligado pela memória oral à fundação do antigo povoado de Morrinhos e à construção da igreja desde sua chegada, Mathias Cardoso de Almeida veio, trazendo um grupo de negros, de Porto Seguro, junto com outros brancos entre eles portugueses. Instalou-se primeiramente na margem do rio Verde Grande, mas a área onde começou a ser implantado o arraial foi inundada por uma cheia do rio, levando-o a transferir a construção do mesmo para outro lugar nas margens do rio São Francisco. Novamente uma enorme cheia invadiu o arraial em construção. Conversando com outros membros de seu grupo, o fundador perguntou: "o que nós vamos fazer?" Outros disseram: "agora que a gente não pode mais ficar lá em baixo e nós estamos aqui em cima e como nós estamos tirando pedra e cal e fazendo tijolos aqui, vamos ficar por aqui mesmo". O arraial e sua igreja foram então construídos, em um lugar mais elevado, nas proximidades de três morrinhos dando origem a atual cidade e que serviu do topônimo ao arraial nascente. Seu Francisco Cardoso, narrando a história da raiz da cidade também informa que "o grupo que chegou de Porto Seguro começou a construir essa igreja daqui e quem terminou sua construção foi um parente meu, dos antigos, Januário Cardoso".

A história da raiz se contada pelos moradores, informa que seu fundador e construtor inicial da igreja foi realmente o Mestre de Campo Mathias Cardoso de Almeida, que por três momentos distintos deu início à construção do arraial e da igreja de Nossa Senhora da Conceição, devido às cheias do rio Verde Grande e do rio São Francisco que impediam a complementação da empreitada. Enquanto que na históriografia, Diogo de Vasconcelos (1900), Urbino Viana (1935), Affonso de Taunay (1948) e Brasiliano Braz (1977) informam que o arraial de Mathias Cardoso não coincide com o arraial de Morrinhos, que teria sido fundado e construído inicialmente por Januário Cardoso, assim como a sua igreja. Para Salomão de Vasconcellos (1944) e Simeão Ribeiro Pires (1979) há coincidência com a narrativa guardada pela memória oral dos matienses. Como não tenho intenção de esclarecer esse imbróglio, apenas informo ao leitor essa questão discordante entre historiadores e destes com a memória local.

Tão logo se viu que a nova posição do arraial estava imune a inundações, deu-se início a sua construção e da igreja, efetivada sobre as ordens de Mathias Cardoso de Almeida, que também mandou erguer um enorme muro de pedras com aproximadamente quatro metros de altura e cujos fragmentos ainda eram encontrados por volta dos anos 1960. Todo o trabalho foi realizado com mão-de-obra de pretos e de caboclos1 aprisionados em seus confrontos com o grupo fundador em suas andanças pelas matas da região. E também pelo aprisionamento daqueles que se aventurassem a percorrer o rio São Francisco, descendo ou subindo de canoa e que vistos, ao longe, do posto de observação em cima de um dos morrinhos, possibilitava acionar um grupo armado para aprisioná-los. Quando os negros e caboclos escravizados não estavam mais produzindo aquilo que deles se esperava, eram jogado vivos numa das lagoas existentes dentro da área delimitada pelo murro de pedras e cujo nome, Lagoa das Piranhas, informa a morte cruel desses infelizes.

Ao mesmo tempo, Mathias Cardoso mandou cavar vários túneis que possibilitariam a fuga em caso de ataque ao arraial. Se pegos de surpresa dentro do próprio arraial, havia um túnel que ligava a casa principal à igreja. Esta foi construída numa concepção que conjugava sua função religiosa com a de um forte, nela há diversos seteiros2, propícios à sua defesa, e posicionado como o último bastião a cair para que os moradores de Morrinhos fossem vencidos. E mesmo se vencidos, havia um segundo túnel que passando por baixo do rio São Francisco possibilitaria a fuga para o outro lado do mesmo rio até uma colina aí existente. E, finalmente, um terceiro túnel que unia o arraial de Morrinhos ao arraial de Pedras de Baixo. Em uma semana santa, uma dentre tantas quando todos os paulistas e baianos povoadores brancos dos Currais da Bahia se encontravam anualmente, Mathias Cardoso conheceu a Maria da Cruz, casada com seu parente3 e moradora do segundo povoado. Apaixonaram-se um pelo outro e decidiram cavar um túnel que possibilitasse os seus encontros sem que ninguém soubesse. Para guardar o segredo, todos aqueles que trabalhassem na sua construção seriam depois mortos. De uma das grutas existentes nos morrinhos, o Mestre de Campo direcionou o seu túnel para Pedras de Baixo e Maria da Cruz, a partir de um quatro em sua casa da fazenda, em direção a Morrinhos, até que se encontram um com o outro. Por esse túnel com aproximadamente duzentos quilômetros, os dois se visitavam e na ocasião levavam em seus bornais rapadura, farinha, paçoca de carne seca, frutas e água para se alimentarem. No meio do caminho entre os dois lugares, dentro do túnel, se encontravam e passavam dias namorando. Dessa paixão secreta nasceu um filho que junto com a mãe foi um dos líderes da Conjuração Sanfranciscana em 1736.

Do ponto de vista do prestígio, o bandeirante era mais reconhecido, em seu tempo, na Capitania da Bahia que na vila de São Paulo, levando-o possivelmente a freqüentar a então capital do Brasil. Há, também, a opção apresentada por Salomão de Vasconcellos (1944) e por Simeão Ribeiro Pires (1979) de que no atual território norte mineiro, paulistas e baianos tenham se congraçado para a consolidação social e econômica dos então Currais da Bahia. Com o florescimento do arraial nos tempos antigos, no princípio do Brasil, Morrinhos tornou-se um porto comercial muito forte comandado pelo Mestre de Campo Mathias Cardoso. Ele, seus parentes e amigos tinham muitas fazendas por toda a volta na área, eu cheguei a ver os alicerces de muitas delas. A riqueza de Morrinhos era tamanha devido ao comércio daqui com Salvador e depois com Goiás e Mato Grosso. As mercadorias chegavam aqui por barco, usando o rio, e por tropas que iam e vinham de Tranqueiras na Bahia. Mas aí, São Paulo e Rio de Janeiro, porque ficavam no litoral, começaram a se desenvolver e o comércio de Morrinhos acabou e começou a dar para trás e o povo foi embora, só ficando aqui os que não queriam trabalhar duro.

Assim, o senhor Mazin narra o auge e a decadência de Matias Cardoso, ao mesmo tempo em que informa a existência de uma organização social baseada em laços de parentesco e amizade entre os primeiros povoadores dos, então, chamados Currais da Bahia, atualmente Norte de Minas. Nesse sentido, em seu pequeno ensaio de bandeirologia, Cassiano Ricardo informa a base a partir da qual se organizavam as bandeiras paulistas, dentre elas a dos povoadores do território norte mineiro. Para ele "a bandeira é o primeiro grupo em que se operam na colônia a solidariedade social mais ampla do que a da família, não faltando exemplos do seu feitio nitidamente comunitário" (1956: 66).