Prefácio

Temos em mãos o Dicionário Bibliográfico de Assuntos Mineiros de Antônio de Paiva Moura. Trata-se de obra de inestimável importância. Com efeito, os pesquisadores de temas mineiros encontrarão doravante uma obra de consulta e orientação necessária ao desenvolvimento de seus estudos.

Felizmente, hoje vão se multiplicando os centros de documentação e o cuidado cada vez maior de criar arquivos magnéticos interligados em redes favorecendo a consulta, isso, porém, não torna dispensável o Dicionário do professor Moura. Pelo contrário é seu trabalho que viabiliza o uso efetivo de fontes informatizadas. Apesar disso não é a questão do útil-inútil que revela o valor dessa obra, mas o fato de ela se inserir em, ao mesmo tempo que destaca, as múltiplas atividades de seu autor e manifestar a generosidade de que só os grandes bibliófilos são capazes.

Conhecemos o autor como historiador da arte, etnógrafo, ficcionista, enfim, polígrafo. Em suas múltiplas faces temos sempre presente o pesquisador atento. No Dicionário, deparamo-nos com o pesquisador que transborda e brinda o leitor, já não mais com um discurso construído a partir das fontes pesquisadas, mas indicando o caminho, as sendas para alcançar as próprias fontes. Esse brinde torna-se um ato de desprendimento. Encontramos aqui o resultado de mais de vinte e sete anos de pacientes registros de fontes de estudo. São vinte e sete anos, acreditando que os estudiosos precisam ir à origem, sistematizar o próprio conhecimento, examinar constantemente as lacunas de suas entrevisões. Para chegar até aqui o leitor necessita de estar à procura, de ter definido o que quer. 

Uma obra de orientação a estudos e pesquisas sempre encontra o leitor em meio do caminho. Ninguém procura um catálogo ou um dicionário antes de sentir carência na sistematização da própria ignorância, antes de conhecer as lacunas que marcam o esforço de construção do seu objeto de estudo. Exatamente por isso, arquivos, catálogos, cadastros e dicionários são obras abertas. O leitor, ao mesmo tempo que encontra neles orientação adequada para prosseguir os estudos, traz de volta uma série de acréscimos. Neste Dicionário, estaremos diretamente em contato com as fontes bibliográficas da Biblioteca do Arquivo Público Mineiro, da Seção Mineiriana da Biblioteca Pública Estadual, das bibliotecas da FAFI-BH, da Fundação Escola Guignard e da FAFICH-UFMG e também com bibliotecas do Rio de Janeiro, de São Paulo e do interior mineiro, como a Biblioteca Nacional, a Biblioteca "Mário de Andrade", a Biblioteca Antônio Torres de Diamantina" e as de colecionadores domésticos.

Nessas andanças, algumas resultado de atividade profissional, outras, desse empenho constante em documentar - o autor é também excelente fotógrafo - as fichas configuram um projeto. O leitor encontrará no Dicionário assuntos extraídos da leitura de 300 livros, dos periódicos mais importantes dedicados a assuntos mineiros, como as centenárias Revista do Arquivo Público Mineiro, Revista do Instituto Histórico e Geográfico Brasileiro, Kosmos - essa última, editada no Rio de Janeiro de 1901 a 1907; Cultura Política - edição do Departamento de Imprensa e Propaganda do governo Getúlio Vargas - e inúmeras outras, sem esquecer avulsos dos jornais Estado de Minas, Folha de Minas, Jornal do Brasil, Folha de São Paulo, O Globo, Jornal de Casa. Tudo isso perfaz 5000 informações. O trabalho é exemplo de exuberância da atividade docente. Encontramos sintetizados séculos de estudos sobre Minas Gerais.

O professor Moura, registrando seu projeto declara: "Na medida em que iam crescendo as universidades e estabelecimentos isolados de ensino, crescia também a necessidade de desenvolver a capacidade científica e tecnológica de pessoal especializado. A monografia tornou-se instrumento mais eficaz na avaliação e comprovação da capacidade e de vocação para as especializações. As universidades começaram a compreender que os problemas contemporâneos ou remotos deveriam ser investigados e analisados em profundidade sem a qual não havia perspectiva de desenvolvimento científico. Daí, cada vez maior o número de estudiosos lançados na tarefa do estudo temático, circunscrito a uma região ou espaço territorial definido. Minas Gerais constituiu-se em excelente campo de investigação científica, pela alta idade geológica de seu território; pelas circunstâncias de sua formação histórica; pela diversidade de suas fronteiras; pela complexidade étnica de sua população." Em face dessa constatação o autor argumenta que "essa fartura de material científico atraiu" viajantes estrangeiros, brasileiros e os próprios interesses do Estado através de seus governos exigiram pacientes trabalhos de bibliófilos. É por sentir-se inserido nessa corrente que o professor Moura cuidou de organizar seus registros e procurar uma editora interessada.

Entre os objetivos enumerados pelo autor, pensamos que dois deles merecem especial destaque: auxiliar "as bibliotecas, de modo geral, na catalogação de seus acervos" e "divulgar obras e ensaios adormecidos nas bibliotecas ou nas estantes de autores". Com efeito, uma das dificuldades encontradas pelos estudiosos e pesquisadores advém dos processos de catalogação de assuntos em bibliotecas. Nossos bibliotecários dominam muito bem as técnicas de catalogação e alguns até mesmo os softs desenvolvidos para agilizar consultas, entretanto, apenas o longo exercício em uma área específica favorece a prática da catalogação por assunto. A anedota conhecida de que o livro de Sérgio Buarque de Holanda, Raízes do Brasil foi catalogado e guardado na estante de botânica, embora mordaz, serve para alertar que não é suficiente dominar técnicas de fichamento, indexação e catalogação. O conteúdo não diz de que modo deve ser classificado. Os longos Thesaurus expõem as árvores em que os assuntos se desdobram, mas como compreender todos esses meandros? Em nosso entender, está aí a importância primeira do Dicionário: os bibliotecários favorecerão aos consulentes ao catalogarem e classificarem os acervos sob sua custódia e guarda. Dizemos mais uma vez que o professor Moura não é um autor que apenas domina técnicas de classificação e catalogação, mas um pesquisador de conteúdos que emprega técnicas de indexação. O longo estudo que vem fazendo sobre a festa do Divino em Diamantina é apenas um exemplo dessa dedicação do pesquisador. Voltaremos a esse assunto mais à frente.

Outro objetivo "divulgar obras e ensaios adormecidos" é também da maior importância e aqui denunciamos a atividade editorial no Brasil. Essa, embora cresça a cada dia, as edições são freqüentemente limitadas e mal distribuídas. Raridades bibliográficas são também pouco conhecidas. Mas o que parece círculo vicioso, as limitações do mercado editorial dificultam o acesso a determinadas obras que se encontram encalhadas em depósitos de distribuidores ou de autores. Uns poucos estudiosos acumulam em bibliotecas particulares obras preciosas, às vezes, registros de memória secular. Não é raro, contudo, que tal esforço tenha como destino sacos de lixo no passeio, ou quando os parentes têm alguma "ilustração", os fundos dos "sebos", onde aguardarão um novo colecionador, mesmo assim, dispersando todo um esforço de estudos temáticos. "Divulgar obras e ensaios adormecidos em estantes ... nas estantes de autores" contribui para que o desenvolvimento da pesquisa entre nós consolide efetivo diálogo entre os que estudam ou estudaram determinado assunto. A dificuldade da pesquisa bibliográfica e documental faz com que um mesmo assunto seja tratado inúmeras vezes sem qualquer articulação com outros.

O Dicionário, além disso, constitui-se em subsídio aos argumentos dos pesquisadores para que bibliotecas e centros de documentação adotem uma política de ampliação e preservação de seus acervos. Com efeito, um dos pontos perversos do acanhamento de nosso mercado editorial assenta-se no fato de nossas bibliotecas constituirem seus acervos pelo processo de doação. Os editores reclamam constantemente dessa tradição, os principais clientes de um mercado editorial vivem fora dele. O conhecimento da existência de obras não disponíveis para consulta, esperamos, promoverá a médio prazo um maior cuidado dos diretores de bibliotecas na definição de um política de atualização e ampliação de seu acervo. 

Há também um objetivo que nos parece de alta relevância e que apenas a publicação em forma de livro supre. Dizemos de contribuir para a consolidação de uma cultura do estudo sistemático, da consulta prévia antes de iniciar um projeto, da preparação adequada da formação de autores acadêmicos. Nossos cursos superiores vêm hoje exigindo dos alunos a elaboração de monografia como requisito para conclusão. A qualidade dessas monografias é díspar, falta muitas vezes a seus autores o cuidado de preparar-se para o projeto, levantando o conhecimento disponível como ponto de partida e objeto de diálogo. 

A forma de livro assumida pelo Dicionário, conforme reconhece ao autor, leva em consideração a nossa realidade cultural e sócio-econômica: "O Brasil e, particularmente, Minas Gerais estão longe de poder contar com terminais de computação eletrônica nas bibliotecas e arquivos públicos, a curto e médio prazos". O livro ainda é o expediente mais adequado para consolidar e disseminar cultura.

Outro aspecto que precisa ser assinalado é que a obra resulta de longa prática de documentação e pesquisa. Acreditamos que se o professor Moura fosse apenas um profissional de bibliotecas e arquivos, esse Dicionário teria um aspecto diferente do que apresenta. Aqui ele alia dois tipos de conhecimentos técnicos e duas demandas; a do profissional voltado para a guarda e recuperação de informações e a do pesquisador que vem em busca das informações disponíveis. O Dicionário assume aqui sua face didática, pretende ensinar ao pesquisador a forma mais adequada de explicitar sua demanda aos centros de documentação. Aprender a fazê-lo é uma peripécia vivida não apenas pelos pesquisadores iniciantes. Dessa forma, na seção intitulada "Metodologia", o autor declara: "O Dicionário Bibliográfico de Assuntos Mineiros foi planejado como um repertório do tipo 'geral' e 'exaustivo', isto é, abrange Minas Gerais desde a pré-história até os nossos dias, englobando o maior número de assuntos possíveis, encontrados nas obras compiladas. Além disso as fichas abertas obedeceram somente ao critério sinalético, limitando-se às identificações das obras compiladas". O dicionarista assim o preferiu, não só para poupar espaço, mas para desviar-se do critério historiográfico de análise das obras.
Essa Metodologia percorre a trajetória do pesquisador na definição de seu tema e na explicitação de suas necessidades de leitura e documentação. A opção metodológica, porém, vai mais longe; ao limitar-se "às identificações das obras compiladas" o dicionarista acolhe todos os leitores na diversidade de seus projetos, deixando-lhes o sabor próprio e a experiência a ser vivenciada de descobrir nas obras registradas a contribuição que cada uma oferece na construção do objeto de estudo. Ele empregara-a com absoluto sucesso no catálogo bibliográfico A cultura afro-brasileira em Minas (1987) em que nos oferece alguns dos frutos do trabalho de criador e organizador do Centro de Informações Folclóricas. 

A opção metodológica do professor Moura é uma marca muito sua. Em toda a sua obra multifacetada há esse sinete da nobreza intelectual - contribuir sem obrigar, dizer o estritamente necessário para iniciar o diálogo. Sua obra tem como característica primeira o poder de síntese. Às vezes parece ao leitor profundamente avarenta, mas trata-se apenas de aparência, Moura é pródigo em abrir sendas. O hábito do fotógrafo torna-o crítico profundo das linguagens discursivas quando a emprega. Afinal quem fotografa sabe que uma fotografia diz sempre menos do contexto em que foi produzida e que não se compreende totalmente sem um longo diálogo com o criador daquele instante mágico de congelar processos, mas, ao mesmo tempo, a fotografia é documento independente que cria inúmeros autores, cada um daqueles que a contempla e interpreta. É o Moura fotógrafo que se mostra na criação discursiva, aqui ele é mais um roteirista à procura de atores, diretores, cenógrafos e nisso repousa toda sua nobreza. Pergunto: O que é A herança de Sobreira, esse livro que se lê num fôlego - e se degusta para sempre -, senão a obra do fotógrafo? O que é História da Violência em Minas? Em especial, como compreender esse belíssimo Panorama literário de Diamantina, sem a experiência do fotógrafo? 
Em A Herança de Sobreira, temos mais que um roteirista, o autor apresenta-nos um "curta-metragem" com a qualidade que o gênero exige, dizer sinteticamente o que merece ser dito para iniciar o diálogo. Já História da violência em Minas é um roteiro densíssimo, definindo um vastíssimo programa de pesquisa e calcado na experiência segura do estudioso de fontes primárias e secundárias. Panorama literário de Diamantina é um roteiro seguro para que os estudantes da Região e os interessados em geral conheçam, dediquem-se e se aprofundem no estudo da produção literária tão diversificada e característica do que tem sido chamado de a "civilização mineira". Dirigida ao estudante que freqüenta os centros acadêmicos de Diamantina é mais que um roteiro, é uma instigação, convite à saída da mediocridade. A marca da síntese está presente principalmente nos inúmeros artigos e ensaios publicados em revistas e cadernos especiais de jornais. Neles o autor alcança a perfeição. Diz tudo que precisa com a maior economia. Nada fica de fora, mas, também nenhuma palavra é desperdiçada. Essa prioridade da concisão não prejudica a clareza. Moura não é jamais telegráfico ou hermético, pelo contrário, é explicitamente claro. Domina a clareza como ninguém e tem a habilidade especial do faiscador e do garimpeiro; o que interessa é o ouro que se apura, após longo período de cata. O que importa é o diamante que brilha, sintetizando meses e meses de trabalho árduo. O cascalho entulha as margens dos córregos mas os diamantes reluzem nos salões. É esse o poder da concisão.
Para encerrar, convém colocar o leitor à espera de uma obra que apenas o professor Moura tem condição de nos oferecer e da qual já nos brindou com alguns brilhantezinhos. Referimo-nos à longa pesquisa que vem fazendo sobre a festa do Divino de Diamantina. Trata-se de estudo de garimpeiro. Todo ano, Moura, máquina fotográfica à mão, gravador ligado, ouvidos atentos, registra, ouve, participa. Já conhecemos o roteiro e sabemos também que há apenas um diretor capaz de rodar esse filme: chama-se Antônio de Paiva Moura.

José Moreira de Souza
Escola de Governo - Fundação João Pinheiro